Texto Curatorial por Clara Figueiredo e Gabriel Kogan
EU / MUNDO?
“Fusão de duplas condições intrínsecas à existência humana forçadamente escancaradas” Paola Ornaghi
O passado recente é uma dessas coisas difíceis de se elaborar. A ferida ainda não cicatrizou, alguns diriam, apegando-se a provérbios populares. Algumas feridas não cicatrizam, certas vezes é necessário colocar o dedo nelas, certas vezes é importante aproveitar o calor do momento para sustentar reflexões e destacar rotas de fuga. É a proposta da exposição “Coordenadas Entrópicas: um olhar sobre a jovem fotografia brasileira em tempos de pandemia”. Pretendemos por meio desse percurso expositivos de imagens e sons convidá-los a conhecer as narrativas e reflexões produzidas por jovens fotógrafos e fotógrafas nos últimos dois anos no Brasil. Ao compartilhar nosso olhar enquanto curadores e o olhar desse grupo de fotógrafos e fotógrafas, esperamos também compartilhar nossas angústias e aprendizados a respeito disso que chamamos natureza e o modo como nós, enquanto sociedade marcada por um desenvolvimento desigual e combinado, interagimos e, em alguns casos, a construímos e nos construímos. Partimos do pressuposto que a pandemia representou um despertar - da forma mais dolorosa possível - da nossa indistinguibilidade em relação a natureza: a relação conflituosa com os animais como disparador, um vírus disseminado e totalmente invisível, a intensificação nas relações (e migrações) entre cidade e campo. Não haveria algo como uma natureza interior e uma exterior. Haveria apenas uma a que nós pertencemos.
O QUE SÃO ESSAS FOTOS?
“Elas ocorreram no período de um ano, que coincide, não por acaso, com a pandemia. Foi um baque muito forte. Não sabia mais para onde olhar. E, a resposta é o título do ensaio: Coordenadas”. Pedro Kok
Em março de 2020, adotou-se no Brasil o auto isolamento social como uma medida de achatamento da curva de mortes e transmissões do Covid-19. Diferente do que ocorreu em outros países, como o Japão, as medidas de auto-isolamento foram longas, cercadas de controvérsias e destituídas de diretrizes unificadas. “Todos em casa, salve-se quem puder”. Da noite para o dia tudo parou e assim permaneceu: três meses viraram um ano, um ano virou dois, quase três. Apesar de iniciativas privadas e públicas de fomento à arte e cultura (editais de apoio, auxílio emergencial, etc.), artistas se viram sem trabalho e mesmo questionando a validade de sua produção frente a uma pandemia mundial que se alastrava, como narra, em seu depoimento, o fotógrafo de arquitetura Pedro Kok. Tudo isso acabou por revelar a força criativa e a relevância do cenário artístico cultural brasileiro. A prática da fotografia teve que se reinventar rapidamente. O espaço doméstico e o ambiente virtual passaram, do dia para a noite, a serem o cenário e o tema das obras. Ensaios de propaganda e moda passaram a ser feitos remotamente, nas salas de suas casas, como narra o fotógrafo Pedro Bonacina. Artistas trocaram a agitação das vernissages de museus e galerias por regiões rurais isoladas onde se tinha impressão de maior segurança sanitária. Quem permaneceu nas grandes metrópoles, viu a paisagem vívida - tão essencial para a surpresa da street photography - dar lugar a um ambiente desolador, praticamente vazio. Relatos de booms criativos, a necessidade do lúdico e o constante exercício de elaborações artísticas coletivas marcaram esse período. Impossível atravessar as desgastantes rotinas de homeoffice, o desemprego, o isolamento, o medo, as mortes, o caos generalizado sem o respiro proporcionado por músicas, filmes, ilustrações, poemas e fotos. Nesse momento de esgarçamento e fusão do interior e exterior, casa e trabalho, como tematizou Paola Ornaghi, usamos todas as ferramentas ao nosso alcance. Coordenadas, rotas de fuga e saídas de emergência nos ajudaram a construir novos horizontes e compreender para onde olhar. Com efeito, nesse ínterim surgiram iniciativas que fundiam o virtual e o presencial. Grandes improvisos. Novas formas de produção e socialização virtuais, semi-presenciais ou itinerantes. Cada um no seu quadrado, ou melhor, atrás de seu quadrado, sua tela, celulares e computadores produziu ou reelaborou materiais já existentes como narram Ana Dora, Fernanda Corsini e Frederico Ravioli. Alguns, buscaram novas formas de se relacionar com o mundo, encontrando a fotografia como instrumento, como foi o caso de Gabriel Bueno, Camila Alba e Luisa Zuchi. Nesse período surgiram novas associações e formas de organização de artistas. O Espaço Sem Nome - a plataforma curatorial que deu origem a essa exposição - foi uma dessas novas criações em tempos de pandemia. Buscamos incentivar a produção por meio da possibilidade de alta circulação online de imagens, revelar novos criadores e expandir fontes de renda dos artistas. Com o intuito de mobilizar o campo e o acesso a arte, bem como, criar um espaço de encontro e exposição autorais de jovens fotógrafos brasileiros.
NATUREZA?
“E, aí eu fico nessa natureza muito distante e ameaçadora. Seja porque a gente ficou trancado em casa e nos faltou muito esse contato fora dos blocos e paredes, com a natureza. Seja porque o Covid seja também uma expressão natural. O fruto da sociedade”. Frederico Raviolli.
Ao longo de uma pandemia mundial que produziu muitas mortes, sendo mais de 670 mil apenas no Brasil até agora, o home office e o auto isolamento foi possível para apenas uma parcela da população. Nesse sentido, ainda em 2020, surgiram diversas iniciativas do campo das artes e cultura que visavam produzir reflexões críticas sobre o que estávamos vivendo e como havíamos, enquanto sociedade chegado até ali, e mesmo arrecadar fundos para doar à iniciativas sociais. A pandemia gerada pela proliferação do covid-19 esgarçou e evidenciou, especialmente em países como o Brasil, problemas estruturais do modo vida contemporâneo. A noção de progresso infinito desencadeou consequências tanto em escalas climáticas globais como nos substratos microbiológicos. No cerne de tais discussões encontramos uma suposta oposição entre natural e artificial, ser humano e natureza. Muito comum em sociedades de influência cristã, tais oposições tornam-se estranhas quando nos deparamos com, por exemplo, o pressuposto milenar japonês de que os seres humanos fazem parte da natureza, e portanto não seria possível traçar a existência desse binômio. O fruto da criação da natureza é também parte dela. Com a pandemia, essa indistinção entre natureza e seres humanos ganha novas camadas. Não só porque muitos de nós realmente sentimos falta de maior contato com paisagens não-urbanas. Relatos sobre a construção de pequenos jardins em apartamentos e uma espécie de “retorno ao campo”, tornaram-se muito comuns nas grandes cidades brasileiras. Além disso, na prática, muitos de nós, nos encontramos trancafiados em nossos apartamentos, com medo do mundo lá fora. Da natureza, de um vírus. O fruto invisível de uma relação conflituosa entre seres humanos, sociedades e animais foi capaz de gerar uma crise sanitária e econômica brutal. A indistinguibilidade entre natureza e humanidade apontou então agora não para a total artificialização da vida, mas para o lado oposto. Lembramo-nos que, por mais que os corais mais isolados da Austrália hoje carreguem o traço de nossa interferência, nós fazemos parte de um ecossistema maior. O nosso impulso de artificialização do ambiente será sempre incompleto. Por mais que tudo ao nosso redor pareça já transformado e “domado” por nós seres humanos, há uma força incontrolável e imprevisível que nós mesmos fazemos parte. E, quem sabe, chegou o momento de nos atentarmos a ela.
A FOTOGRAFIA PODE MOSTRAR“
Nesse momento de crises conjugadas, nosso modo de vida urbano contemporâneo deve ser, mais do que nunca, posto em xeque e sob escrutínio e eu acredito que a fotografia pode se mostrar muito contundente nessa tarefa”. Luiza C. Zucchi.
Transitando entre imagens de florestas e apartamentos, essa exposição busca retomar por meio da fotografia esse debate sobre as várias naturezas e sobre nossa indissociação daquilo e daqueles que nos envolvem, como o despertar doloroso da pandemia nos alertou. O que temos aqui é um conjunto de reflexões, textuais, sonoras e visuais produzidas nos últimos dois anos. São fotografias e reflexões mobilizadas por fotografias que tematizam de forma mais ou menos direta as questões que nos afligiram, mobilizaram e instigaram recentemente. A relação entre a humanidade e a natureza; a própria ideia de natureza; o progresso e o seu avesso; a fotografia e a pandemia; a produção fotográfica brasileira contemporânea; a japonesa; os encontros e desencontros entre Brasil e o Japão nos últimos dois anos. É com grande alegria que compartilhamos um pouquinho disso tudo com vocês. Esperamos que após a visita dessa breve exposição, vocês também embarquem na busca de rotas de fugas e novas coordenadas.